Por Franklin Ferreira
Por: Franklin Ferreira. Palestrado no dia 11/02/13, na 15ª Consciência Cristã (VINACC). Copyright © Franklin Ferreira.
Uma definição de
cultura
Antes de falarmos da relação do cristão com a cultura, é
necessário definirmos o que é cultura:
• Em sentido
amplo, refere-se ao cultivo de hábitos, interesses, língua e vida artística de
uma nação: histórias, símbolos, estruturas de poder, estruturas
organizacionais, sistemas de controle, rituais e rotinas.
• Tudo o que
caracteriza uma realidade social de um povo ou nação, ou então de grupos no
interior de uma sociedade: valores, atitudes, crenças e costumes.
Não raro o cristão se torna uma subcultura dentro de uma
nação. Ele tem seus valores, atitudes, crenças e costumes. Mas daí, surgem as
perguntas: O cristão pode participar das festas nacionais? O cristão pode
beber? Como o cristão lida com arte, cinema, etc.? O cristão pode ser um diretor,
ator, etc.? O cristão pode ouvir música do mundo? Como o cristão lida com
economia, política, filosofia? O cristão deve impor sua cultura quando sai em
missões? O que pode ser tolerado? O que deve mudar?
Modelos de como os cristãos lidaram com a cultura ao longo da
história
Para falar sobre o cristão e a cultura, precisamos lembrar
que a igreja não nasceu em nossa geração. Temos que ser humildes e olharmos
para a história da igreja para ver como os cristãos do passado lidaram com a
cultura.
H. Richard Niebuhr (1894-1962), apresentou em seu livro
Cristo e cultura (download gratuito) cinco categorias de classificação do
relacionamento entre o cristão e a cultura, fornecendo, assim, ferramentas para
descrever a forma que os cristãos encaram questões sociais, éticas, políticas e
econômicas.
1. O cristão contra a cultura
Os que seguem esta corrente enfatizam que, diante da natureza
decaída da criação, é necessário que se criem estruturas alternativas, e que
estas sigam mais de perto o chamado radical do evangelho. Esta posição foi
afirmada no Didaquê, na Primeira Epístola de Clemente, e nos escritos de
Tertuliano (c.160–c.225) e dos anabatistas do século xvi, como Michael Sattler
(c.1490–1527).
Resumidamente, a cultura é caída, má e demoníaca; rejeite
tudo. Exemplos:
“A filosofia é a matéria básica da sabedoria mundana,
intérprete temerária da natureza e da ordem de Deus. De fato, é a filosofia que
equipa as heresias… Ó miserável Aristóteles! Que lhes proporcionaste a
dialética, esse artífice hábil para construir e destruir, esse versátil
camaleão que se disfarça nas sentenças, se faz violento nas conjecturas, duro
nos argumentos, que fomenta contendas, molesta a si mesmo, sempre recolocando
problemas antes mesmo de nada resolver. Por ela, proliferam essas intermináveis
fábulas e genealogias, essas questões estéreis, esses discursos que se
alastram, qual caranguejos, e contra os quais o Apóstolo nos adverte na sua
carta aos Colossenses: ‘Cuidado que ninguém vos venha a enredar com suas
sutilezas vazias, acordadas às tradições humanas, mas contrárias à providência
do Espírito Santo’. Este foi o mal de Atenas… Ora que há de comum entre Atenas
e Jerusalém, entre a Academia e a Igreja, entre os hereges e os cristãos? Nossa
formação nos vem do pórtico de Salomão, ali nos ensinou que o Senhor deve ser
buscado na simplicidade do coração. Reflitam, pois, os que andam propalando seu
cristianismo estóico ou platônico. Que novidade mais precisamos depois de
Cristo? [...] Que pesquisa necessitamos mais depois do Evangelho? Possuidores
da fé, nada mais esperamos de credos ulteriores. Pois a primeira coisa que
cremos é que para a fé, não existe
objeto ulterior.” (Tertuliano, De
praescr. haeret., VII)
“Quarto, unimos nossas
forças no que diz respeito à separação do mal. Devemos nos afastar do mal e da
perversidade que o diabo semeou no mundo, para não termos comunhão com isso e
não nos perdermos na confusão dessas abominações. Aliás, todos que não
aceitaram a fé e não se uniram a Deus para fazer a sua vontade são uma grande
abominação aos olhos de Deus. Deles não poderão acrescentar ou surgir nada mais
do que coisas abomináveis. Não existe nada mais no mundo e em toda a criação do
que o bem e o mal, crentes e incrédulos, trevas e luz, os que estão no mundo e
fora do mundo, os templos de Deus e dos ídolos, Cristo e Belial, e nenhum deles
poderá ter comunhão um com o outro. Para nós, pois, é obvio o imperativo do
Senhor, pelo qual nos ordena que nos afastemos e nos mantenhamos longe dos
maus. Assim, ele será nosso Deus e nós seremos seus filhos e filhas. Além
disso, ele nos exorta a abandonar a Babilônia e o paraíso terreno egípcio, para
não passar pelos sofrimentos e dores que o Senhor enviará sobre eles. (…)
Devemos nos afastar de tudo isso e não participar com eles. Porque tudo isso
não passa de abominações, que nos tornam odiosos diante do nosso Senhor Jesus
Cristo, o qual nos libertou da escravidão da nossa natureza pecaminosa e nos
tornou aptos para o serviço de Deus, por meio do Espírito que nos ortogou.”
(Confissão de Schleitheim, IV)
2. O cristão da cultura
Os ensinos do evangelho têm íntima relação com as estruturas
culturais, num processo de acomodação a esta. Ou seja, toda e qualquer cultura
é incorporada no cristianismo.
Apesar das objeções que são lançadas a esta posição, ela tem
sido influente na história da igreja. Os ensinos de gnósticos do século III,
Abelardo de Paris (1079–1142) e dos teólogos liberais do século XIX refletem
esta posição.. A igreja evangélica na Alemanha, por influência deste
entendimento, trocou seu nome para Igreja do Reich e seus pregadores juraram
obediência a Hitler.
O fundamentalismo americano acabou espelhando esta posição,
afirmando os valores básicos da cultura dos Estados Unidos. Aqui no Brasil, se
por um lado rejeitamos toda cultura local (o cristão contra a cultura), por
outro acabamos abraçando a cultura americana (o cristão da cultura), como se
ela fosse uma cultura cristã e achamos que uma cultura é intrinsicamente
superior a outra.
3. O cristão acima da cultura
Este é o conceito católico, influenciado por Clemente de
Alexandria (c.150–c.215) e Tomás de Aquino (1225–1274), que busca uma unidade
entre o cristão e a cultura, onde toda a sociedade aparece hierarquizada. Na
Idade Média o ensino eclesiástico alcançou quase todos os aspectos da sociedade:
suas práticas religiosas formaram o calendário; seus rituais marcaram momentos
importantes (batismo, confirmação, casamento, ordenação) e seus ensinamentos
sustentavam crenças sobre moralidade, significado da vida e a vida após a
morte. A igreja e sua mensagem são institucionalizadas e o que deveria ser
condicionado culturalmente é absolutizado. Neste terceiro modelo, o que é
levado não é o evangelho, mas uma cultura.
4. O cristão e a cultura em paradoxo
Posição comumente associada a Martinho Lutero (1483-1546) e
Søren Kierkegaard (1813-1855). Esta posição mantém o entendimento bíblico da
queda e da miséria do pecado, e o chamado para se lidar com a cultura. A
relação do cristão com a cultura é marcada por uma tensão dinâmica entre a ira
e a misericórdia.
Lutero enfatizou este tema com sua doutrina dos “dois
reinos”: a mão esquerda, mundana, segura a espada do poder no mundo, enquanto a
mão direita, celeste, segura a espada do Espírito, a Palavra de Deus. Não se
pode tentar coagir a fé, nem se pode tentar acomodar a fé aos modos seculares
de pensamento.
Um exemplo: espancamento feminino. A mulher deve processar o
marido? Nesta visão paradoxal, como cristã, ela não deveria (pois o crente não
leva outro ao tribunal secular), mas como cidadã, sim. Então, a mulher vive um
conflito paradoxal.
5. O cristão como agente transformador da cultura
A cultura deve ser levada cativa ao senhorio de Cristo. Sem
desconsiderar a queda e o pecado, mas enfatizando que, no princípio, a criação
era boa, os que estão nesse grupo enfatizam que um dos objetivos da redenção é
transformar a cultura. Sendo assim, por mais iníquas que sejam certas
instituições, elas não estão fora do alcance da soberania de Deus. Ou seja,
mesmo sabendo da queda, o cristão não abandona a cultura (o cristão contra a
cultura), mas busca redimi-la, levá-la aos pés de Cristo.
Agostinho (354-430), João Calvino (1509-1564), John Wesley
(1703-1791) e Abraham Kuyper (1837-1920) são alguns dos que entenderam que os
cristãos são agentes de transformação da cultura, posição que é exposta nesta
obra de Niebuhr. Em Apocalipse, vemos que Deus redime tanto a pessoa, como a
diversidade cultural.
Nesta posição, não há divisão entre o sagrado e o profano –
essa é uma dicotomia católica (a divisão sagrado/profano afirma que na igreja
fazemos atividades sagradas e, no mundo, atividades profanas; ou seja, rezar,
ser padre é algo sagrado, mas construir um prédio e ser um engenheiro são
coisas profanas). A divisão bíblica é entre o que é santo e está em pecado; e
que está em pecado deve ser santificado.
Relatório de Willowbank
A afirmação de que o cristão é um agente transformador da
cultura pode ser resumida na compreensão de que “uma vez que o homem é criado
por Deus, parte de sua cultura será rica em beleza e bondade. Por causa da
queda e do pecado do homem, toda a sua cultura [usos e costumes] está manchada
pelo pecado, e parte dela é demoníaca” (Pacto de Lausanne §10) — o evangelho
nunca é hóspede da cultura, mas sempre seu juiz e redentor.
O Grupo de Teologia e Educação de Lausanne propôs um modelo
hierárquico de ação sobre a entrada do evangelho na cultura (Relatório de
Willowbank, 1978) que pode ser de auxílio em nosso trato com a cultura ao nosso
redor.
Categoria de costumes
Como um missionário deve proceder em uma cultura diferente? O
Relatório de Willowbank propõe uma relação quádrupla do cristão com a cultura:
1. Alguns costumes
não podem ser tolerados, como a idolatria, infanticídio, canibalismo, vingança,
mutilação física, prostituição ritual, entre outros.
2. Alguns costumes
podem ser temporariamente tolerados [por uma geração], como a escravidão, o
sistema de castas, o sistema tribal, a poligamia, entre outros.
3. Há alguns
costumes cujas objeções não são relevantes para o evangelho, como o costume de
o homem e a mulher sentarem separados nos cultos, os costumes alimentares,
vestimentas, hábitos de higiene pessoal, entre outros.
4. Assuntos
secundários (adiáforos) sobre os quais há controvérsias mas que pode-se ter
liberdade de análise, como escatologia, governo da igreja, ceia e batismo
Exemplo do ponto 2: quando chefes tribais polígamos se
convertiam, eles eram obrigados pelos missionários a abandonar todas suas
esposas, que ou morriam de fome ou se prostituíam, podendo morrer apedrejadas.
Vendo isso, os missionários acharam uma medida sábia não exigir desse chefe
tribal o abandono da poligamia, mas exigir tal atitude da próxima geração de
cristãos.
Aplicação do ponto 3: Se você é um novo pastor, não tente
mudar a cultura da igreja, se ela se encaixa neste nível. Pregue o evangelho!
“Não se distinguem os
cristãos dos demais, nem pela região, nem pela língua, nem pelos costumes. (…)
Seguem os costumes locais relativamente ao vestuário, à alimentação e ao
restante estilo de viver, apresentando um estado de vida admirável (…).
Enquanto cidadãos, de tudo participam, porém tudo suportam como estrangeiros.
(…) Se a vida deles decorre na terra, a cidadania, contudo está nos céus.
Obedecem as leis estabelecidas, todavia superam-nas pela vida. Amam a todos, e
por todos são perseguidos (…) Para simplificar, o que é a alma no corpo são no
mundo os cristãos”. (5-6) (Epístola a Diogneto).
Por: Franklin Ferreira. Palestrado no dia 11/02/13, na 15ª Consciência Cristã (VINACC). Copyright © Franklin Ferreira.
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